Humanização
A história da saúde e da doença mental passa por explicações mágicas e místicas,
percorre a exclusão, encarceramento e exploração econômica. Deflagra a luta antimanicomial
e a Reforma do Modelo Assistencial, até chegar ao processo atual de busca pela humanização
em seu tratamento (Coga & Vizzotto, 1997).
De acordo com o Ministério da Saúde (MS, 2007), a humanização na área da saúde se
remete a proposta ética, estética e política. Ética por implicar em mudanças de
atitude dos trabalhadores, dos usuários e dos gestores de saúde, onde todos passam
a ser co-responsáveis pela qualidade das ações e dos serviços prestados em saúde.
Estética, por buscar abranger o sistema de produção de saúde de pessoas vistas subjetivamente
como autônomas e protagonistas desse processo, e finalmente, política, por se tratar
de uma organização social e institucional das práticas de atenção e gestão do Sistema
Único de Saúde (SUS).
O processo de humanização deve ser orientado pelos seguintes valores: autonomia,
co-responsabilidade, protagonismo dos sujeitos envolvidos, solidariedade entre os
vínculos estabelecidos, respeito aos direitos dos usuários e participação coletiva
no processo de gestão (MS, 2007).
A construção desse processo foi possibilitada pela evolução social, mudanças culturais,
evolução na formação dos profissionais e avanço para uma medicação mais eficaz.
Segundo Queiroz (1992), o processo de humanização da Saúde se originou nos movimentos
de reformas sanitárias, pela conquista de uma ampliação no conceito de saúde, que
passou a incorporar entre seus determinantes, as condições de vida e a deslocar
no sentido da comunidade, a assistência que era focada como médico-hospitalar, no
processo de atenção à saúde.
O trabalho em equipe já era enfatizado por Basaglia (apud Antunes & Queiroz, 2007)
em suas críticas com a instituição manicomial. A ênfase de sua proposta envolvia
a diminuição de leitos nos hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento de serviços
compostos por equipes multiprofissionais, capazes de responder às necessidades de
ser e de integridade dos seres humanos.
A legislação brasileira que organiza o SUS é orientada pela Constituição Federal
de 1988, as Leis Federais nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e nº 8.142, de 28
de dezembro de 1990, as quais visam incorporar ações de promoção, proteção e recuperação
da saúde, fundamentando um conceito de saúde que deixa de ser centrado na doença,
e visa um novo modelo de atenção integral em saúde.
A constituição de 1988 propôs diretrizes políticas inovadoras a fim de melhorar
a qualidade da atenção a saúde no país. Dentre elas, podemos destacar:o conceito
abrangente de saúde considerando o meio físico, socioeconômico e cultural, fatores
biológicos e o acesso aos serviços de prevenção e cura; o direito de todos às ações
de saúde, sendo do poder público o dever de prover tal direito; e o estabelecimento
do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desta forma, o conceito de saúde é amplo e deve ser definido como um fator resultante
de condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho,
transporte, lazer, liberdade e acesso a serviços de saúde. Este processo aponta
para uma concepção em que saúde não se reduz a ausência de doenças, e sim a uma
vida com qualidade.
A busca da conquista da saúde enquanto direito, com um novo modelo de assistência
às pessoas, foi, e ainda é articulada por trabalhadores da Saúde Mental, usuários
e seus familiares, que reivindicaram, principalmente a partir dos anos 1980, a garantia
dos direitos das pessoas com sofrimento psíquico, e que, agora amparados pelos princípios
e diretrizes do SUS, de universalidade, integralidade, igualdade, equidade, descentralização
e participação da comunidade, têm mais argumentos legais para enfrentar este desafio
(Coga & Vizzotto, 1997).
Podemos acompanhar que desde 1992, o MS (2007), prevê em sua Portaria nº 224/92
serviços de Saúde Mental condizentes com a nova Política de Saúde Mental. Esta Portaria
regulamenta os seguintes atendimentos em regime ambulatorial: a Oficina Terapêutica
(OT) que se caracteriza por ser um espaço onde se desenvolvem atividades grupais
de expressão e inserção social; o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que é utilizado
como intermediário entre o hospital psiquiátrico e o atendimento no ambulatório;
a Saúde Mental em Unidade Básica de Saúde (UBS), que exige uma equipe mínima composta
por: psicólogo, assistente social e psiquiatra; o Ambulatório de Especialidade que
exige a composição completa de equipe multidisciplinar; e a Residência Terapêutica,
para pacientes que receberam alta do hospital psiquiátrico.
Em 2001, foi aprovada a Lei 10.216, conhecida como a Lei da Reforma do Modelo Assistencial,
a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais, e ainda, redireciona o modelo assistencial em Saúde Mental.
Essa Lei e as portarias subseqüentes do MS (2007) determinam a progressiva desinstitucionalização
e desospitalização das pessoas com sofrimento psíquico, levando os antigos manicômios
a serem substituídos por serviços de Saúde Mental, tais como: ações de Saúde Mental
na Atenção Básica, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Residências Terapêuticas,
pensões protegidas, Cooperativas de Trabalho Protegido e Oficinas de Geração de
Renda, os quais devem seguir a lógica da descentralização e da territorialização
do atendimento em saúde, prevista na Lei Federal que instituiu o SUS.
Apesar de ser um processo lento e com desafios e dificuldades, há conquistas, que
têm estimulado a constituição de redes de atenção psicossocial de base comunitária,
substitutivas ao modelo centrado na internação hospitalar, como forma de garantir
os direitos dos usuários com transtornos mentais (MS, 2007). Neste novo modelo de
cuidado, há grandes mudanças no tratamento dos usuários, o qual: passa a ser humanizado;
há a disposição de equipes multidisciplinares para o acompanhamento terapêutico;
os usuários adquirem também o papel de agentes no próprio tratamento; e conquistam
o direito de se organizar em associações e cooperativas, promovendo a inserção social
de seus membros.
Para acompanhar o processo da saúde em geral foi criado a Política Nacional de Humanização
(PNH) da atenção e gestão no Sistema Único de Saúde, conhecida como Humaniza SUS.
Perspectiva multiprofissional no trabalho em equipe
A fim de conhecer um pouco mais a fundo algumas práticas realizadas neste contexto
e os profissionais nele inserido, é que foi realizado este levantamento bibliográfico
de alguns trabalhos em equipe multiprofissional.
O novo modelo de assistência de Saúde Mental requer sua avaliação por estudos qualitativos
em nível local. Por isto a necessidade de estudos a respeito desta problemática
(Antunes & Queiroz, 2007).
Partindo do conceito de saúde descrito na primeira parte soma-se a importância da
visão de trabalho em equipe de que saúde é um fenômeno integral que só pode ser
acessível a um conjunto de especialidades em constante interação e diálogo. Portanto,
é cada vez mais crescente a necessidade e a busca por abordagens humanizadas às
pessoas em sofrimento por parte dos profissionais de saúde que as assistem.
Scherer e outros (2007) assinalam a dificuldade em se realizar pesquisa nesta área
de equipe de saúde devido às muitas questões a serem respondidas e muitas particularidades
do processo, havendo o inevitável envolvimento dos pesquisadores com a situação
estudada.
Peduzzi (1998) observa que são relativamente raras as definições de equipe, por
vezes os estudos abordam a questão estritamente técnica, em que o trabalho de cada
profissional é apreendido como conjunto de atribuições e tarefas, e a articulação
dos trabalhos especializados é desconsiderada. O trabalho em equipe multiprofissional
é tomado como uma realidade já dada, devido ao fato de existirem profissionais de
diferentes áreas atuando conjuntamente. Além disso, a produção teórica sobre trabalho
em equipe raramente explora a equipe como realidade objetiva e subjetiva do trabalho
em saúde.
A partir disso, a autora desenvolve um conceito e uma tipologia de trabalho em equipe
e os critérios de reconhecimento de seus tipos, analisando aspectos de complementaridade,
interdependência e articulação dos trabalhos, autonomia e interação dos técnicos
(Peduzzi,1998).
Define uma tipologia de trabalho em equipe multiprofissional distinguindo “equipe
agrupamento e “equipe integração”. A equipe agrupamento seria caracterizada pela
fragmentação, ocorrendo a justaposição das ações e o agrupamento dos agentes e uma
maior ênfase na especificidade dos trabalhos. Ocorre, também, a complementaridade
objetiva dos trabalhos especializados, convivendo com a independência do projeto
assistencial de cada área técnica, denotando uma concepção de autonomia plena dos
agentes. Já a equipe integração é definida pela articulação das ações e a interação
de seus agentes e flexibilidade da divisão do trabalho. Há complementaridade e colaboração
no exercício da autonomia técnica e não há independência dos projetos de ação de
cada profissional (Peduzzi,1998).
Para a autora, o trabalho em equipe é uma modalidade de trabalho coletivo que se
configura na relação recíproca entre as intervenções técnicas e a interação dos
diferentes profissionais. Assinala que a partir da relação estabelecida entre trabalho
e interação, os profissionais podem construir consensos que configuram um verdadeiro
projeto assistencial comum, em torno do qual se dá a integração da equipe de trabalho.
Segundo Peduzzi (1998), a elaboração de um projeto assistencial comum trata-se de
um plano de ação para uma situação concreta de trabalho coletivo em equipe. Os agentes
partem de uma realidade dada, que toma em consideração o projeto assistencial hegemônico,
biomédico, e dentro de certo campo de possibilidades, constroem, por meio de suas
atividades técnicas cotidianas, um projeto pertinente às necessidades de saúde,
com base no diálogo e no reconhecimento intersubjetivo, investindo na construção
conjunta de um projeto assistencial que abarque a complexidade e a multidimensionalidade
da saúde.
Outro aspecto abordado pela autora é a questão dos trabalhos entre os profissionais
da equipe serem diferentes ou serem desiguais. As diferenças técnicas de trabalho
acabam por configurarem-se desiguais quanto a sua valorização social:
“as diferenças técnicas transmutam-se em desigualdades sociais entre os agentes de
trabalho, e a equipe multiprofissional expressa tanto às diferenças quanto as desigualdades
entre as áreas, e concreta e cotidianamente, entre os agentes-sujeitos do trabalho”
(Peduzzi, p. 107, 1998).
Observa-se que, na situação de trabalho coletivo em que há menor desigualdade entre
os diferentes trabalhos e agentes, ocorre maior integração na equipe. Pois à medida
que o trabalho em equipe é construído em uma relação de interação, maiores as possibilidades
dos profissionais interagirem em situações livres de coação e de submissão.
A autora, ainda, destaca a necessidade de preservar as especificidades de cada trabalho,
somando-se a necessidade a flexibilização da divisão do trabalho. Os profissionais
realizam atividades próprias de suas áreas, mas também podem executar ações comuns,
nas quais estão integrados campos distintos. Os dois tipos de intervenções, as específicas
e as comuns, compõe o projeto assistencial construído, de fato, pela equipe como
um todo (Peduzzi,1998).
No estudo de Scherer e outros (2007), encontramos a definição sobre trabalho em
equipe semelhante ao estudo anterior com o acréscimo do conceito de humanização.
Os autores definem que o trabalho em equipe tem como ideal a ação integrada e complementar
de cuidados com o intuito de oferecer um atendimento humanizado ao usuário. Observa-se
que são fatores determinantes no trabalho em equipe a distribuição e articulação
das tarefas técnicas, a clareza do papel profissional de cada um, bem como do outro,
os limites e a responsabilidade de cada área de atuação.
Dentre as dificuldades de trabalho em equipe, assinala-se o choque de saberes e
áreas distintas e a confusão de papéis. Enfatiza-se também que a necessidade em
implementar estratégias para amenizar os conflitos exige a criação de um espaço
para a reflexão acerca da prática direta junto ao usuário, bem como da busca de
coesão. Coesão entendida como o oferecimento de apoio e formação de vínculos, favorecendo
a integração da equipe e das ações, ou seja, as reuniões sistemáticas dos profissionais
que compõem a equipe surgem como recurso para integrar as diversas formas de sentir,
pensar e agir (Scherer e outros, 2007).
A partir de encontros grupais da equipe multiprofissional para reflexão das próprias
práticas, podemos observar que a equipe de atendimento procura se envolver na criação
de um ambiente terapêutico institucional, pois estas reuniões podem favorecer a
sensibilização aos fenômenos emocionais do grupo, tanto dos indivíduos no grupo,
como do grupo como um todo.
Para tanto, é necessário a criação e a manutenção de um espaço continente, onde
todos se sintam predispostos às trocas mútuas sobre as vivências angustiantes de
seu dia-a-dia profissional, bem como a refletir sobre maneiras de atenuá-las. Um
ambiente favorável aos relacionamentos equipe-equipe e equipe-usuário que proporcione
a tolerância às frustrações; o suporte das ansiedades, das impotências e dos conflitos
decorrentes de rivalidades profissionais; a convivência com as diferenças de atuação
profissional; e, principalmente, o trabalho em equipe.
A esse respeito, Oliveira & Alessi (2003) acrescentam que no processo de humanização
há a constituição dos profissionais da saúde como co-responsáveis por um trabalho
coletivo de superação das práticas hegemônicas biológicas. A atuação conscientizada
do técnico de seu papel profissional e social, inserido em um contexto social e
político, possibilita a escolha por práticas de trabalho que visem o resgate desta
condição ao usuário.
Antunes & Queiroz (2007) também descrevem que a perspectiva multiprofissional no
trabalho de equipe reside na concepção de que o conhecimento sobre o ser humano
se processa em campos ampliados, e não em mundos particulares e isolados. Desse
modo, a proposta de um novo paradigma assistencial conduz o profissional a novas
praticas em saúde mental e abre inúmeras possibilidades envolvendo o trabalho em
equipe.
Apesar do reconhecimento da equipe de saúde como fator fundamental para este novo
modelo, o trabalho multiprofissional ainda apresenta pouco suporte. A insuficiência
de apoio político e cultural favorável à implementação das praticas, a carência
de recursos financeiros adequados e a quantificação dos atendimentos como prioridade
para o sistema governamental em detrimento da preocupação com a qualidade dos serviços.
Além destes fatores, a principal dificuldade encontrada na área diz respeito à ausência
de tecnologias humanas, ou seja, de profissionais que sustentem um atendimento integrado
e essencialmente humano ao seu próximo (Antunes & Queiroz, 2007).
Considerações Finais
A nova Política em Saúde Mental propõe transformar o modelo assistencial e construir
um novo estatuto social, mas ainda esbarra em muitas dificuldades para sua realização.
A garantia dos direitos das pessoas com sofrimento psíquico, levando em conta os
princípios e diretrizes do SUS e a luta por um novo modelo de assistência, propõe
a criação de uma rede de serviços de atenção psicossocial, de base comunitária.
Quando se pensa em Humanização na saúde há a valorização de diferentes sujeitos:
usuários, familiares, trabalhadores e gestores, que estão envolvidos num contexto
maior que é a comunidade. Esse processo de humanização deveria passar por todos
estes sujeitos e, também, pela construção de trocas solidárias e comprometidas com
a dupla tarefa de produção de saúde e produção de sujeitos.
Um dos princípios norteadores desta Política é o fortalecimento do trabalho em equipe
multiprofissional, por meio de da promoção de ações que assegurem a participação
dos trabalhadores nos processos de discussão e decisão, fortalecendo e valorizando
os profissionais no seu crescimento e conhecimento.
A partir disto, podemos desenvolver práticas de trabalho nas quais os diferentes
profissionais não sejam meros colaboradores, mas autores responsáveis que compartilham
um projeto coletivo articulado. Nesta visão, concordamos que tanto equipe como usuários
estão em constante processo de transformação.
Finalizando, consideramos que, para que ocorra, de fato, a humanização na saúde,
é necessário que se construa e se mantenha espaços de reflexão e de transformação
constantes das práticas profissionais e que por meio de decisões compartilhadas,
a equipe multiprofissional possa se nutrir para novos desafios.
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